quarta-feira, 30 de março de 2011

Tradição, família e promiscuidade

Poucos dias após o deputado Júlio Campos (DEM-MT) ter sido “mal interpretado” ao se referir ao Ministro do STF Joaquim Barbosa como “moreno escuro”, também o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) parece ter erroneamente passado por racista. Afinal, alegou o parlamentar, “minha esposa é afro-descendente e meu sogro é negão”. Ah, bom!

Em participação no programa CQC, o polêmico (no caso, eufemismo para truculento) deputado “progressista” respondeu a perguntas de populares. Perguntado sobre suas referências políticas, respondeu: Médici, Geisel, Figueiredo. Arguido sobre o que faria se pegasse o filho fumando maconha, tascou: “daria uma porrada”. Indagado sobre sua reação diante de uma hipotética homossexualidade do filho, disse que não corre esse risco, pois o filho teve boa educação, com pai presente. Também afirmou que desfiles gays são “promoção de maus costumes”. E o gran finale: questionado por Preta Gil sobre o que faria se seu filho se apaixonasse por uma garota negra, Bolsonaro respondeu: “Ô Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o teu”.

Sinceramente, acredito nas desculpas de Sua Excelência. Em uma sequência de perguntas sobre gays, pode muito bem ter sido traído por uma pergunta sobre relações raciais. Enfim, ajustando as contas, Bolsonaro não teria se revelado racista, mas, sim, homofóbico. Ah, bom!

Não é novidade que Jair Bolsonaro conquistou a condição de mais bem acabada expressão do reacionarismo nacional. É o nosso Jean-Marie Le Pen e o nosso Tea Party. No entanto, além das conclusões mais óbvias, a fala de Bolsonaro, especialmente por responder a Preta Gil, fez com que me ocorresse a seguinte dúvida: qual o verdadeiro propósito que mobilizou o golpe de 1964 e qual a natureza das forças que sustentaram o regime militar?

Tenho uma hipótese: o que mais afrontava o conservadorismo radicalizado da época – com participação expressiva nas Forças Armadas e na Igreja Católica, muito embora as duas instituições também tivessem, ainda que em número menor, expoentes à esquerda – não era só o perigo do comunismo, mas o perigo da revolução cultural e comportamental que aflorara com tudo nos anos 1960. A emergência do sexo livre, o combate das mulheres às amarras machistas ou os gays mostrando-se orgulhosamente à revelia da repressão moralista, tudo isso embutido no furacão de sexo, drogas e rock’n roll, causava verdadeiro pânico nos tradicionalistas.

A principal manifestação de apoio aos militares, logo após o golpe, chamou-se Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada em 02/04/64, no Rio de Janeiro. Não apenas os regimes político e econômico estavam em jogo, mas a família e Deus. Ou seja, a estrutura familiar e social, tal qual concebida tradicionalmente, sob a benção da Santa Madre Igreja, devia ser preservada. Pode-se imaginar o medo desse pessoal de ver o Brasil invadido por gays, mulheres desonradas e toda a sorte de “promiscuidade”. Tanto quanto ou maior que o medo de ver o país sob o comando de comunistas. A propósito, seriam farinha do mesmo saco: o “promíscuo” seria o equivalente comportamental do inimigo político, o “subversivo”.

Em seu livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso relembra o exílio imposto a ele e a Gilberto Gil, o pai de Preta. Em determinado momento, mostra-se surpreso pelo fato deles, artistas do movimento tropicalista, terem sido vítimas do regime. Logo os tropicalistas, sobre os quais pairavam críticas, vindas da própria esquerda, de concessões à cultura de massas, de serem alienados, despolitizados etc. Caetano interpreta que, de certa forma, esses “transviados” da Tropicália seriam mais perigosos ao status quo do que artistas ditos engajados.

Ao acusar Preta Gil e o ambiente familiar em que foi educada, Bolsonaro demonstra, tardiamente – anacronicamente, talvez seja o termo mais apropriado –, quem são os inimigos das viúvas da ditadura e demais reacionários. Na falta de comunistas, nesta época pós-muro de Berlin, o impulso raivoso volta-se a quem quer que desafie o mundinho ordeiro, santificado, estruturado sobre os alicerces da moral e dos bons costumes. Bolsonaro age como um defensor desse mundo e de seus valores. Assim como, para ele, devem fazer os verdadeiros patriotas, estejam eles nos quartéis, nos claustros ou quaisquer outros lugares imunes às investidas da “promiscuidade”.

Por mais respeito que se deva à opinião e à sua livre expressão em uma sociedade democrática, a própria defesa da democracia e do Estado de Direito impõe certas cautelas. A primeiríssima delas é o respeito irrestrito aos ditames da nossa Constituição, a mesma que Bolsonaro um dia jurou. Ditames como a defesa dos direitos humanos (art. 1º, III; art. 4º, II; art. 5º, III), o que não se coaduna com a apologia da tortura. Ou da construção de uma sociedade sem preconceitos (art. 3º, IV), o que não se concilia com o racismo, a homofobia ou qualquer forma de discriminação.

A se considerar o Brasil de hoje como um Estado democrático de Direito, a defesa do que prescreve nossa Constituição é o mínimo que se espera de todos os cidadãos brasileiros, especialmente daqueles democraticamente eleitos para exercer um cargo político. Inclusive Jair Bolsonaro, um viúvo apaixonado da ditadura, ironicamente eleito pelo voto popular.

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Em tempo: tão ou mais ofensivo que as palavras de Jair Bolsonaro no programa CQC é o desenho colocado na porta do seu gabinete. Em uma alusão aos desaparecidos do Araguaia, a figura sugere que são cachorros os que procuram por ossadas naquela região do país. Imagino o quanto essa “brincadeira” não fere as pessoas que há anos buscam os corpos de familiares, provavelmente assassinados por “patriotas” como o nobre deputado.

Por João Quirino

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